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Mostrando postagens de 2014

Traição

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Cantando, o galo trai a tarde. Sobre a mesa, o bolo de chocolate não espera mais por ninguém. A cadeira vazia tomba sobre as próprias pernas. As tardes passando desfolhando árvores destelhando casas passando passando passando. O café esfriou no bule. O canto do galo ficou truncado na garganta da tarde. Cantando, o galo trai a morte. Ilustra: Christian Schloé

Teares de nuvens

Nas varandas dos céus, nuvens fiam as chuvas da tarde. Nas varandas dos céus anjos fiam a tarde com flocos de nuvens.

Valsa com a morte

                                                      (Poema in memoriam do poeta Manoel de Barros e de Carlos Carlos Prudente Correa, ambos falecidos no dia 12 de novembro de 2014). A morte convida-me para dançar uma valsa nesta quinta-feira sombria e triste. Rabisco alguns versos in memoriam do homem que subiu aos céus, hoje, vestido de azul, pendurado na cauda dos pássaros. No centro da sala as violetas me olham, desconfiadas, das minhas intenções. Conto-lhes que acordei com a visita da morte. Ela visitou-me tres vezes antes do galo cantar, na madrugada de cabelos encrespados pelo vento. Ela riscou a minha janela com o sinete do enforcado: e quando acordei eu soube que ela levara para sempre o homem frágil, o homem carente de abraços, o homem simples que se vestia de nuvens e se cobria com o  sorrisos dos netos. Acordamos todos mais orfãos nesta quinta-feira sombria. O homem que falava com torrões de açucar na boca, encantou-se por uma sereia à beira  mar

Blues Eyes

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inenarráveis olhos azuis,  um copo de vidro desde ontem estilhaçado no meio do quarto sem forças prá recolher tuas mãos em cacos.  Mas nosso filho dorme, nos teus sonhos blues. Ilustra: Dino Valls

Pimenta Rosa

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Há vendilhões do templo na minha genealogia;  por isso arranquei raízes de aroeira em busca do  seu poético fruto: a doce pimenta rosa e, com ela, atazanei o seu peixe cozendo-o em folhas de bananeira enquanto você dormia em outra redes, que não a minha; entre aborígenes & gringos & extraterrestres caminhei quarenta anos pelo deserto, em busca do meu pecado original: encontrei lagartos & formigas desterrados; anões &  feiticeiras & padres & comendadores e toda horda de seres vivos,  vitimados pela tragédia vinda de cima, debaixo e de todos os lados; de seus lugares-casas  no mundo; enfiei zilhões de cravos numa maçã e deixei-a pendurada no guardarroupa da nossa casa imaginária; aguardei que o feitiço virasse contra o feiticeiro, mas você não voltou ao lugar do crime, sequer olhou prá trás, na sua trilha solitária. Os meus caminhos traçados com açúcar foram lambidos por outras fêmeas,  sedentas de afeto.

GÉRBERAS DESBOTADAS

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As gérberas insistem em nascer entre as saias das samambaias, mas crescem desbotadas, sem o abraço do sol. Eu, mensageira da agonia, perambulo  pelas ruas da cidade onde o sol nunca nasce, nem se põe. A cidade das trevas, das cercas de arames farpados nas janelas, de onde crianças deixaram as marcas de suas mãos, agarrando-se  ao último fio de cabelo de suas mães, antes de serem lançadas no espaço.  Cidades de cruzes e túmulos de soldados que nunca viram uma guerra de perto, pois lhes bastam a queda de braço com o cotidiano.   Cidade de muralhas invisíveis aos olhos nús, mas que impedem a passagem até dos seus próprios fantasmas. Eu, passageira deste trem da agonia, descarrilho entre os vãos e desvãos da memória, tentando encontrar uma só réstia de luz, onde os meus olhos possam descansar, antes de fechá-los para sempre. Mas o labirinto da cidade que habito não tem porta de saída. Só de entrada.  Como eu, encontro outros  que perambulam nessa vastidão negra, tateando portas e p

Peleja com fantasmas

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Nas armadilhas do tempo me emaranho, musa dos poetas malditos e descalços, vestida com o manto da noite, cravejado de estrelas em busca da rosa dos ventos que me indica estradas  que não quero percorrer,:  _lá, existe um norte, porém sem atalhos. Eu tenho medo das ruas sem saída,  dos bêbados da minha infância,  do homem assassinado da casa em frente à minha,  do seu caixão de madeira vagabunda,  pingando sangue ainda fresco no chão. Tenho medo do homem que chicoteava a mulher,  à beira de um barranco. Medo da cobra que tentou morder meu irmãozinho, no quintal, embaixo do pé de manga; medo da convulsão dos anjos no meu enterro de mentira. A morta não era eu. Mas eu me vi sendo enterrada viva no lugar da virgem noiva-cadáver. Os lábios do noivo  -- intatos ao beijo -- para sempre.  Lábios que eu desejei beijar e por isso, castiguei-me  em seu sepulcro, ainda fresco,  ainda cheio de margaridas e abraços de adeuses.

Êxodo

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Êxodo ...eu e minha fauna voltando pro nosso mundo onírico: a caverna escura dos nossos sonhos inconfessáveis. Perdi o emprego de contadora de estórias,  não paguei a prestação do Minha Casa Minha Vida e fomos todos despejados. Pedi um caminhão de mudança, mas ninguém atendeu ao meu chamado. Eis que eu e minhas fantasias de Alice, Coelho Maluco, Pequeno Príncipe e o Pinóquio ficamos à pé, na poeira. Sem contar os animais de estimação de cada um deles: o peixe, a tartaruga, o cisne e até o tatu-bola, que esteve fazendo uma ponta como símbolo da Copa 2014. Este então, voltou sem lenço, nem documento. Mas agora, estamos todos juntos. Condenados ao desterro. Imagem: Tom Bagshaw

FIAT LUX

cálidas faces de janeiro o suor minando por todos os poros verão que incendeia tudo e todos desfaz-se em gestos inúteis nas praias do abandono deita-se com as vadias e os vândalos do noticiário: -- boquirroto mãos que não acenam mais para seus parceiros de adeuses. guarda-chuvas rasgados, pendurados atrás das portas, anseiam pelo último lampejo de um raio. Fiat lux na nossa escuridão. São Paulo, janeiro de 2014.

Streap-tease da lua

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 No fundo da mata crescem as heras enroscadas em troncos derrubados,  indiferentes a mais uma noite de lua cheia.  Lua melancólica  que despenca do céu dentro da minha varanda, que atravessa vidraças e paredes prá acalentar os que dormem em macas nos corredores dos hospitais, sem  céu nem estrelas por testemunha de suas dores: agudas ou crônicas. Lua indescente que ilumina a trilha para o macabro ceifador de árvores. Lua que  despe suas lingeries vermelhas e faz streap-tease  para uma família de novela na sala de jantar,  diante dos olhos atônitos de avós desmemoriados, e de casais desnamorados. Lua que ilumina a lâmina dourada sobre o braço do madeireiro e seu sonho  verde-amarelo agora, desbotado.  Ilustra: Christian Schloé São Paulo, junho de 2014. 

Poema de capa & espada

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Homens toscos rastejam pelo chão barganhando perdões antigos por moedas falsas: matam  suas mães aos gritos, depois de sugar-lhes todo o leite dos peitos murchos; estupram as flores de seus jardins, cospem pólvora seca no prato em que comeram e ateiam fogo no rabo do gato. A  esperança sobe ao telhado e não encontra mais nenhum amanhã, em  noite de lua cheia e assombrada. Na sala, diante da tevê, os pais dormem, exaustos. Nos sonhos das crianças,  brincadeiras de capa e espada. Ilustra: Adrian Borda                                                             São Paulo, maio/junho de 2014. 

Flores do Mal

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                                                       (Para Charles Baudelaire e Glauber Rocha) os dramas  se constroem na surdina em dobraduras de papel, nas entrelinhas entre um gole de café  e um olhar tácito decifrador de enigmas raios  tempestades  hieróglifos palavras incrustadas com o signo do mal há milênios, no coração dos homens os dramas se constroem com pitadas de sarcasmo e sal,  entre a mulher que varre o quintal, e a velha desdentada,  que cultiva primaveras do outro lado do muro na cama, o moribundo espera por uma das duas, prá lhe trocar as fraldas. as flores são testemunhas mudas, da tragédia cotidiana, e espalham seu perfume -- indiferentes--  ao dragão da maldade os dramas se constroem com  argamassa da sordidez humana, com restos de cachaça e cigarro, algum pigarro, e, às vezes, azeite e mel prá disfarçar o gosto de veneno,

DIÁLOGO COM DRUMMOND II

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Em minhas memórias, revisito seu quarto, escondida de mim mesma. Ficaram os armários com suas portas escancaradas e um cheiro de cigarro, insuportável. Encontro uma concha marinha sobre a cômoda, encosto-a ao ouvido e ainda ouço uma sinfonia de anjos barrocos tocando a melodia das coisas que sonhamos juntos e que não aconteceram. Sonhos solitários, perdidos entre nossos beijos e sexos, sem alma nem matéria que lhes dessem forma. Vasculho gavetas e deparo-me com cartografias de projetos inconclusos, um punhado de grafites e lapiseiras sem pontas. Encontro a velha luneta que usávamos juntos, prá observar partos de estrelas da nossa varanda. Aponto-a para o céu e Aldebaran ainda está lá, com uma guirlanda de flores em seu portal, aguardando nossa chegada. Na minha escrivaninha, ainda tenho a ampulheta que você me mandou de presente num dia ensolarado e muito azul, de qualquer setembro. Nunca soube o que fazer com ela, mas trago-a comigo nesses anos em q

ÚLTIMA MORADA

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A morte te salva no último dia do ano,  de um leito de hospital. Te veste com  as túnicas transparentes   de tua adolescência, te penteia os cabelos sedosos, agora brancos, e os enfeita com cachos de primavera. A morte te pega pelas mãos e te convida para um último passeio, pela cidade que te viu nascer: passeiam de mãos dadas pela Av. Paulista, sob uma chuva de fogos de artíficio. Sentem a respiração ofegante  dos últimos atletas da São Silvestre. A mesma cidade que não sentirá mais a palma dos seus pés macios, a pisar-lhe a alma de leve, desmaiada sobre parapeitos de janelas abertas, nas madrugadas insones. Agora, levitas nas asas do vento,  aspiras ao cheiro dos ipês roxos, floridos só para a tua passagem.   Negra é a noite que se descobre, pra te acolher no seu leito pétreo. Seus cabelos sedosos são soprados para sempre,                    es pa lha dos pelos quatro cantos da cidade,   que te embalou no teu berço-árvore,

Signo de Capricórnio

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Signo de Capricórnio Nasci filha de capricórnio: um bicho estranho que sobe escarpas e também nada nos mares. Não acredita em atalhos e escolhe os caminhos mais árduos. Cabeça dura. Chifres pontiagudos. Não tem papas na língua, nem compactua com a injustiça. Morre de saudade, mas só caminha prá frente. No seu vocabulário, a expressão voltar atrás, foi riscada com a ponta de uma estrela cadente. Não coleciona sofismas, só conchas do mar: estranhos bichos que já habitaram águas, mas aguardam a ressurreição nos desertos dos corações. Capricórnio é um signo que move montanhas, tamanha sua determinação, mas descansa no fundo dos vulcões dormentes. Seu sorriso é de festa, mas carrega, escondido, um colar de lágrimas, entre os seios. Não acredita na sorte, nem em destino: estuda engenharia prá aprender a fazer mapas e desenhar estradas. Gosta mesmo é de carregar tijolos, prá construir casas, mas, nas horas vagas, se aventura é com jogo de palavras. São Paulo, maio de de 2014.

Sobre mulheres & seus brocados

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mulheres têm parentesco com rendas colchas de retalhos com que se cobrem nas noites frias,  se estão sozinhas,  ou cobrem seus filhos que passam frio ao seu lado  mulheres tem parentesco  com agulhas e bordados,  restos de linhas,  retalhos tintos de panos,  alguns botões descasados,  um velho camafeu dourado,  um escapulário que foi de uma tia,  vidros de perfumes vazios,  folhas secas de árvores extintas,  uma pena que elas guardam no meio de um livro, que talvez nunca tenham lido,  alguns brocados, canutilhos, vidrilhos, caixinhas tudo junto e misturado é tudo tralha-meio-parente das mulheres que elas carregam consigo em suas viagens  através dos tempos: - escondidos em baús, no meio de  enxovais embolorados,  - no lombo de burros, subindo despenhadeiros nos Himalaias; -deslizando em barcos azuis, quando é verão nos lagos do Alasca; - esquecidos em estações de trens, cujos parceiros chegaram adiantados; ou p

Claudia

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                                                (Poema em homenagem a Claudia Ferreira da Silva,                                              morta e arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro,                              pela Polícia Militar) Como se fosse um animal selvagem,  foi abatida à queimarroupa;  enfi ada no portamalas,  feito um porco que vai pro matadouro; arrastada pelas ruas da cidade,  com a mesma consideração que os  sacos de lixo não merecem.  Seu corpo -- morto -- foi profanado em plena via pública, ao olhar atônito dos que passavam.  Agora, Claudia toca sua lira  prá fazer seus quatro filhos dormirem em paz (e seus quatro sobrinhos, sonharem) sem sangue nos olhos, sem revolta,  sem vontade de revanche.  Claudia tem parte com os anjos, parte com os bruxos: não é mulher que negaceia trabalho e já chegou armada de trapo e vassoura, pronta prá faxina na casa de Deus,  porquê esse era o seu ganha-pão aq

Bicho adormecido

Te amo demais para te abandonar assim, sem mais nem porquês. Não deixarei que partas           (nunca mais) sem riscar com meus dedos um rio caudaloso de estrelas pelo teu dorso leitoso. A tua mansidão de bicho adormecido esconde uma fera ferida de morte. Como te conheço homem das minhas mil e uma noites entre partidas e repartidas.

O canto da carroça

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a carroça de meu pai cantava sete léguas até o coração (da estrada) na varanda minha mãe  esperava-o com bolinhos de fubá e queijo meu avô trançava couros engolia o bigode mascava fumo cuspia nas mãos na tarde longa vacas ruminavam tédio com capim  Ilustra: Marc Chagal 

Último beijo

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a hora mágica chegou ao fim. do último beijo ressoa o estalar de línguas. o monstro recolhe suas garras e retorna à forma original: ( frágil caracol intumescido, que cresce para dentro) Ilustra: Fang Ling Lee

Esconde-esconde

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Dentro do quarto  o sexo é a flor central onde um gato brinca de esconde-esconde. (limpa a cara e lambe as patas) Uma cobra sai do espelho e morde as pétalas da gigantesca rosa amarela (que ri e mostra os dentes) Ilustra: Fang Ling Lee

São Cosme e Damião

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a poesia há tempos não me visita queria tanto dizer algo sobre o gambá morto no jardim: _ o funcionário executando ordens. um vaso de arruda na porta do barraco (de barro) São Cosme e Damião  quatro olhos nas luzes da esquina do coração nas paredes do tempo orgia de espelhos refletem a alma  do que não sou não és não somos à penas estamos: berloques pendentes  de um Pescoço Supremo. Ilustra: Digital Art

Algóz de mim

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lençóis de água cobrem teu corpo anéis de luz cobrem teu sexo teu gozo algóz de mim

Cigarro de palha

a tarde era de chuva. rede na varanda                                    ba-lan-ça-va o vendedor de livros não convencia. Aflito, consultava as horas. pai tirava palha de um bolso, um canivete do outro,  pi-ca-va- fu-mo enrrrrrrrrrrrrrolava um cigarro na palma da mão: com jeito de quem sabia tudo,  tragava O MUNDO. 

Não somos a primeira vez

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    Beijei os seus olhos em minhas mãos e parti. Não fosse a noite (quente) teria ficado dentro: _ "Nãos somos a primeira vez", disse, de cócoras, à beira do fogão.  brasas ardendo lenha vermelha fumaça branca furava telhas Noite sem estrelas, não deveria haver... Imagem:  Audrey kawasaki Assis, Sp - 1981

Saint Francisco Night

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Põe mais uma ficha na Juke Box e cantarola baixinho: "saint franciscooo niiiight",  meio rouca, pigarreando cigarro e uísque barato.  O bordel está às moscas.  Só um trio de bêbados  ainda teima  em tomar uma ultima cerveja. Ela já os expulsou algumas vezes.  Eles insistem em ir ficando,  noite adentro. Seus corpos vão se desfazendo, malemolentes, aderindo - esponjosos -,  às cadeiras, às mesas. Agarram-se às garrafas. Apertam-nas contra o peito.  Quem sabe no último gole,  a flor da esperança aflore na borda dos copos,  penetre suas gargantas, entranhe suas  raízes em seus corpos mal-cheirosos e lhes devolva alguns centímetros cúbicos de vida.  Saint Franciscooo Niiiight,  cantarola, baixinho, a cafetina triste,  a cabeça pendendo, jogada prá trás, despencada sobre o sofá.  Sorri um riso amargo,  mas ainda mantém os dentes muito brancos:

Relogio da agonia

..no relógio da agonia,  são 4 horas e 17 minutos... não sei de que tempo