DIÁLOGO COM DRUMMOND II




Em minhas memórias, revisito seu quarto,
escondida de mim mesma.
Ficaram os armários com suas portas escancaradas
e um cheiro de cigarro,
insuportável.

Encontro uma concha marinha sobre a cômoda,
encosto-a ao ouvido
e ainda ouço uma sinfonia de anjos barrocos
tocando a melodia das coisas que sonhamos juntos
e que não aconteceram.
Sonhos solitários,
perdidos entre nossos beijos e sexos,
sem alma nem matéria que lhes dessem forma.

Vasculho gavetas e deparo-me com cartografias de projetos inconclusos,
um punhado de grafites e lapiseiras sem pontas.

Encontro a velha luneta que usávamos juntos,
prá observar partos de estrelas da nossa varanda.
Aponto-a para o céu e Aldebaran ainda está lá,
com uma guirlanda de flores em seu portal,
aguardando nossa chegada.

Na minha escrivaninha, ainda tenho a ampulheta
que você me mandou de presente
num dia ensolarado e muito azul,
de qualquer setembro.
Nunca soube o que fazer com ela, mas trago-a comigo
nesses anos em que cresceram heras
nas minhas janelas,
e nunca mais fiz aquela torta de ricota, 

que você gostava tanto.

Do jardim de cerejeiras que não plantamos,
ficaram esboços rascunhados em papel manteiga,
escondidos no fundo das gavetas.
O mesmo destino das conchas recolhidas pelas enseadas do Guarujá:
dissolver-se em areia nos dias embrutecidos de solidão.
"De tudo, sempre fica um pouco", sussurra-me Drummond,
que vem me consolar, nas minhas noites mais frias,
com estrelas caindo mortas, no meu quintal.

Restou um violão mudo, encostado à parede do seu quarto triste,
e uma pulseira de ouro que você fez questão de esquecer,
--vingativo -- no meu porta-jóias,
e que, um dia, talvez, alguém ainda a esqueça, também,
numa casa de penhores.



Poema: Marisa Sevilha Rodrigues

São Paulo- Morumbi, maio de 2014.

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