Água para borboletas
... falo em águas”. (Manoel de
Barros)
Eu ainda acabo tendo um destino de árvore:
de tanto ficar sentada feito Buda,
não vou morrer, vou criar raízes.
Olho pela janela e vejo o dia dezaluzando lá fora. Tenho
que entrar no site do banco e pagar um par de contas: do telefone, da energia
elétrica, do gás. A prestação das meias que comprei pro inverno do ano passado e
que nunca usei. Os moletons que importei da China pelo site muambeiro e que
também ficaram guardados, pois quando aqui chegaram, já fazia um verão de 42 graus. Os grilos já pedem carona lá
fora, prá irem prá casa, no lombo das borboletas e eu aqui, sentada sobre a
minha dor de pagar contas de coisas que não prestam nem prá fazer poesia.
Não se
pode usar moletons como sementes de estrelas. Bois não vestem meias. O inverno
do ano passado já virou água no calendário da minha mesa e escorreu pela fonte
dos meus desejos. Só não foi esquecido na contabilidade dos meus
credores, que lhe acrescentaram juros e multas e juros sobre juros. Juras de
amor ninguém mais faz prá ninguém, a menos que seja no Dia dos Namorados, do
Abraço ou do Beijo. Afetos que ainda
existem só nos crediários, prá gerar boletos, carnês e prestações vencidas.
A
cachorra emburrada embaixo da minha mesa, fez um cachecol com o próprio rabo, enquanto me espera prá sair e despejar seus
dejetos na rua: cocô sobre a graminha verde daquele vizinho que usa um tapa
olho com suspensórios; xixi nos canteiros de margaridas que a síndica mandou
fazer só prá dar mais empregos pras empreiteiras da sua igreja; sem
nenhuma discriminação, porquê cachorro
não sabe o que é isso, gente é que sabe.
Cachorro tem parte com as delicadesas dos perfumes. Só distingue o cheiro ruim de quem não entende a linguagem canina
dos rabos. E os presenteia com o que lhes vai dentro do corpo. Sem nenhuma
vingança. Vingança é coisa de seres sem rabo.
Ou os que os têm.
Presos.
Imagem: Kukula
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