Carta à memória dos peixes



O navio estalando em chamas em alto mar,
a fumaça enovelando-se em direção às montanhas,
o berçário dos peixes morto antes do nascer do sol.
O menino se joga da ponte,
e estatela-se no chão duro.
Rio não há mais.  Lago, também não.
Agora tudo é terra batida.
 Fenda.
 Rachadura.
As mãos esquivas assinam contra-cheques
para pagar o serviço que não houve.
O funcionário que não trabalhou.
O fiscal que subornou.
Em vão me debato nessa rede de ratos
e mal consigo respirar,
dentro dessa fumaça preta.
Tudo é cisco.
Fuligem.
Restos de metal.
Cheiro de coisa morta, no ar.
Os flamingos não mudarão de cor neste verão.
Não haverá por do sol desfraldado no horizonte,
neste amanhã, que nunca deixou de ser ontem.
Eu escrevi uma carta à lápis para o meu futuro.
O tempo apagou-a.
 As letras ficaram borradas.
Entre eu e a carta existe, agora, um segredo indecifrável
que mora nas memórias
dos peixes 
:mortos.


Santos, abril de 2015.



Imagem: Catrin Welz Stein 

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