INCOERÊNCIA









Se não há bem que nunca termine,
então o mal que se veste de bem e me alicia
um dia desistirá de seu cortejo macabro
e me abandonará a minha própria sorte.

Quisera  ser esquecida pelo meu próprio destino,
quisera perder os meus documentos,
o endereço, a memória, quisera.
Não saber nada mais, menos ainda de mim mesma.

Quisera ser uma estrela cadente
debulhada em micro-pontos de luz
a demarcar o meu caminho tracejado nesta terra
oca, sem perfume, sem vales ou despenhadeiros,
onde tudo é redondo e finito,
menos as águas azuis dos teus olhos-lagos,
em cuja borda infinita me abandono
sempre ao cair da tarde, vestida com camisolas
tecidas com nuvens ,
cabelos trançados por um vento velho,
carcomido arqueiro do tempo,
cujas flechas já estão sem pontas e cegas.

Enfrentei, nua, o frio úmido do teu coração
atravessando descalça as aléias do outono.
Amassei com meus pés as folhas e flores  caídas,
cheias de espinhos.
Não acreditei no bruxo do oráculo que
predisse o nosso destino
 incerto.

Quis fazer tudo do meu jeito heróico e ingênuo:
um folhetim medieval para telespectadores maldosos
acostumados a cobrar coerência dos seus autores,
quando na vida e no amor
--  não há coerência –

             nunca.

Imagem: Catrin Welz - Stein

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