Flores secas



O cachorro dormindo ao pé da porta.

A enchente. 
O guarda-roupa e seu destino de traças.
O velho baú sisudo, esquecido em um canto do quarto.
Tento abrí-lo, mas a fechadura está emperrada.

Um baú de lembranças que agora são ossos.

Poeira no desorizonte da estrada.
Estrada que não queria ter percorrido.

Sozinha.

Como era bom banhar-me nos rios da minha infância. 
Rios que corriam límpidos, pelos olhos das minhas irmãs.
 O mergulho cego do alto da ponte.

 O sapato de boneca.

O cabelo trançado. 
O vestido vermelho. 
As imagens dos homens de outros planetas 
que chegavam numa caixa. 
Os lábios secos. 
A vagina sangrando.

Um caderno em branco e a falta de caneta.

 E a internet que não conecta nada a lugar nenhum.

Um pastel de feira. 
Uma camiseta rasgada.
Um dente quebrado.

Da estronca, a dentadura sorri prá mim, zombeteira.

No quintal, o mato cresceu 
e tomou conta dos beirais da casa.
A jabuticabeira nunca mais floriu.

Os pés de laranja foram cortados pelos homens esquisitos.

Os cães doentes foram sacrificados.
Um mendigo pede comida 
prá vender para outro mendigo.

 Um homem cortou a própria mão, furou o olho de outro homem,  mas acaba de sair da cadeia.

A cafetina mantém as putas tristes 
prá garantir o seu champagne
 e um pegnoir de seda, já meio gasto. 
A peruca loura e os cílios postiços.

O tempo, 
cavalheiro indigno da minha esperança, 
bate palmas no portão 
e me deixa um ramalhete.

De flores secas.

Num bilhete, me avisa que já está de partida,
e eu estou atrasada. 

E a internet que não conecta nada a lugar nenhum.

Dracena, 8 de agosto de 2011.

Comentários

Anônimo disse…
I love this poem, although it is very melancholic, a mirror of the perception you have of your life. You, looking in the mirror, reflecting an image of you and with it of all your past and things that no longer are.
It is a poem about the time that lapsed and left the person who is today in front of that mirror with all these memories of other (happier) times.

I like the music and invocation of this poem. This is a great one!
Carmen Quartim Madia disse…
Gosto muito desse poema! Posso ver nítidamente flashs de memórias que se uniram em palavras, e que são recordações de sua história. Sinto sempre em seus poemas um tom choroso de saudade e melancolia, um esforço além de suas forças que te impulsionou a ir em busca da vida, e trazer essa guerreira que chegou com todos os medos, inseguranças, ansiedades, tristezas, um coração pleno de amor e a certeza que chegaria, mesmo faltando pedaços, e que ao longo da vida vão sendo resgatados. Como vc mesmo disse um dia, nossas histórias são muito parecidas. Beijo grande, Carmen Quartim Madia
Meus pedaços são impossíveis de serem resgatados, Carmem, pq apodreeram pelo caminho, foram queimados, pisoteados, destruídos. Eu, simplesmente, não chegeui a lugar nenhum. E se cheguei, já é tarde demais prá recompor qualquer quadro das minhas memórias.
O cachorro dormindo ao pé da porta.

A enchente.
O guarda-roupa e seu destino de traças.
O velho baú sisudo, esquecido em um canto do quarto.
Tento abrí-lo, mas a fechadura está emperrada.

Um baú de lembranças que agora são ossos.

Poeira no desorizonte da estrada.
Estrada que não queria ter percorrido.

Sozinha.

Como era bom banhar-me nos rios da minha infância.
Rios que corriam límpidos, pelos olhos das minhas irmãs.
O mergulho cego do alto da ponte.

O sapato de boneca.

O cabelo trançado.
O vestido vermelho.
As imagens dos homens de outros planetas
que chegavam numa caixa.
Os lábios secos.
A vagina sangrando.

Um caderno em branco e a falta de caneta.

E a internet que não conecta nada a lugar nenhum.

Um pastel de feira.
Uma camiseta rasgada.
Um dente quebrado.

Da estronca, a dentadura sorri prá mim, zombeteira.

No quintal, o mato cresceu
e tomou conta dos beirais da casa.
A jabuticabeira nunca mais floriu.

Os pés de laranja foram cortados pelos homens esquisitos.

Os cães doentes foram sacrificados.
Um mendigo pede comida
prá vender para outro mendigo.

Um homem cortou a própria mão, furou o olho de outro homem, mas acaba de sair da cadeia.

A cafetina mantém as putas tristes
prá garantir o seu champagne
e um pegnoir de seda, já meio gasto.
A peruca loura e os cílios postiços.

O tempo,
cavalheiro indigno da minha esperança,
bate palmas no portão
e me deixa um ramalhete.

De flores secas.

Num bilhete, me avisa que já está de partida,
e eu estou atrasada.

E a internet que não conecta nada a lugar nenhum.

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