As quatro estações do amor

I

Um era o selo. O outro, a carta.

Um ar cúmplice, de correspondência certa,

os unia.

Um era o trem,o outro, os trilhos.

Um era o pão, o outro, a faca.

II



Fazíamos pic-nic na cama, todas as manhãs

com a cumplicidade do chinelo às panelas.

Num bolero de Ravel,tudo era riso e festa,

entre biscoitos e cobertas.



Agora, se te pego rindo,

você me pede desculpas e diz que não foi nada.

III

Hoje, fico a espera de um outro homem,

vindo não se sabe de onde. De outra galáxia, talvez.

Numa espaçonave azul-esférica.

De uniforme branco, resplandescente.



Um homem sem emoções, que me mate de prazer e dor,

sem me amar.

Porque ser feliz é muito chato!

IV



No vaso, as flores estão secas. O batom escorre pelos cantos

dos lábios, também secos.

No espelho, o poema não resistiu a tanta saudade.

Não sobrou nada. Nem um fio de barba

na pia do banheiro, nem uma navalha na carne.

A casa já não rescende mais ao cheiro de Omno e incenso.

Está morta. Irremediavelmente,morta!

V



Eu te esperava à estação, com um chapéu de ponta

e um cravo na lapela.

Você se fez de tonta, foi vadia e vândala,

burra, talvez!

Agora, a chave faz greve na porta

e um drink interminável segura o relógio pelos cabelos.

A vodka não é mais a mesma,

nem os bilhetes, tampouco.

VI



Paixão de março, proscrita depois das águas.

Nem os versos suportaram tamanho homicídio de amor.

Foram-se os poemas em guardanapos de papel,

guardados em todas as gavetas.

VII



Me lembro daquele anel de serpente

no dedo indicador.

Apontava-me as quatro direções.

Como uma bússola maluca punha-se a girar:

norte, sul, leste, oeste.

I Ching estava coberto de razão.

Não daria certo nunca, meu amor!



VIII



Fizemos um pacto na última sexta-feira da paixão.

À mesa posta, esperavam, os doze anos,

vividos juntos. Um a um chegaram.

Foram se sentando. De repente, das mãos tortas

penderam-se os cálices: ouvimos o estilhaço das vidraças

antes do vinho geral.

Mortos. Irremediavelmente, mortos.

Antes do sábado de aleluia.

IX

Emigrar para o sul: "Eis a solução", pensei.

Entre hortênsias ladeando o caminho,

uma xícara de chocolate de manhã,

um beijo e um bilhete doce,

uma rosa no travesseiro.

Estaria a salvo o nosso amor.

X

Eu era o chicote e você não sabia. Não podia saber.

Esporas queimavam-me as entranhas.

Um rubor feria lábios e faces. Não podia saber.

Gramado é lindo, mas é apenas um cartão postal!

XI



Cavalos doidos em disparada derrubaram o padre

na hora da Santa Ceia. Acabou-se a missa crioula.

Os gaúchos tomavam chimarrão na praia.

Às três da tarde. Fervendo.

Ciscos de chá preto no céu. Urubús em círculo.

Vontade de trepar com o mundo.E a digital registrando tudo.

Um clique. E o seu sorriso jaz numa fotografia.

XII

Eis o que nos resta.

Apenas uma máquina fotográfica e um álbum de família.

Não terei mais o bebê-gigante,

de cócoras, sobre a terra.

Um parto intergaláctico me aguarda,

na próxima estação das águas.

Comentários

Pedro da Mota Pereira disse…
Lindo esse poema. Me emociona a cada vez que o leio.

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