Ritual de Despedida




Dispo-me da camisola com um rabo de peixe
e atiro-me ao vendaval dos cães noturnos
das calçadas e vielas podres.
O óleo velho do candeeiro
exala um odor de múmias pétreas
e nega-se a qualquer sinal de luz.
O faroleiro preso no alto da torre
tenta encontrar o rastro do navio negreiro
desaparecido na noite densa dos temporais.
Gigantescas ondas engolem restos de homens, peixes e luas.
Na Terra Prometida, os filhos de Adão e Eva
não suportarão os horrores do pecado original.
Hordas de viajantes tracejam um caminho de ponto-em-cruz
nos desertos mais longínquos do Grande Oriente.
Com as mãos em conchas
Recolho seixos, estrelas e cavalos marinhos dessas areias movediças,
e prego-os, um a um, na barra da saia acetinada
que usarei na noite cigana.
Da árvore da vida, colho os pássaros verdejantes,
E com eles, monto um colar de contas, cantos e contos.
Com ramos de angélica, sutil perfume,
entreteço uma coroa de flores brancas a enfeitar-me
os longos cabelos emaranhados e brancos
que agora brotam nos desfiladeiros e penhascos
de mim, interiores.
Se me visses, assim, vestida,
não me reconhecerias mais
pois as janelas brilhantes dos teus olhos verdes
não mais guardam a imagem do anjo

que segurava o rabo de uma estrela cadente.
Não, tu nãos mais me reconhecerias.
Andarilha que sou, agora,
perseguindo os passos dos que partiram
antes de mim,
nessa jornada de mapas perdidos
e candeeiros desluzados.

O fim do mundo será apenas um soluço do universo.

Não, comigo, não te preocupes.

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