Réquiem Para o Velório de um Poeta em um Domingo Roxo





I


Cheiro a camiseta molhada de suor e sinto a brisa refrescante,
 lavando-me a alma e a cara.

Desabalada carreira, despenhadeiro abaixo,
precipício aberto.
Não me importo mais com a hora da chegada
Não mais quero os louros
e as glórias da pole position.
Aliás, nem a vitória quero mais.
Dispenso congratulações e salamaleques
_fidalguias, fidalguices, alegorias!!!_
Deixo cair a máscara da desgraça
e levanto a cabeça desse mergulho cego.
Desperta,
dispo-me da fantasia de Gata Borralheira.
Sou Alice no País das Maravilhas.
E estou acordada.

II


Agora posso me permitir olhar
pelo buraco da fechadura
e descobrir o pescoço do cisne
chacoalhando-se de um banho rápido
na xícara de chá.
Danço com todos os coelhos da minha rua
e eles não têm mais que me apresentar suas cartolas,
nem certidões de nascimento.
A bicha da minha rua é Divina
e eu sou a única espectadora de seu show solitário
num domingo pleno de sol, ao meio dia,
em frente à banca de jornais da esquina.
Do varal de jornais dependurados
secam páginas retintas,
de onde escorrem letras ensanguentadas.
O rio vermelho segue o caminho natural
do mercado das pulgas.
Piso nas poças sangrentas que brotam da calçada
e um abismo se abre entre eu e os outros.
Só à deusa Divina é permitido banhar-se nessas àguas
de lama e sangue.
As foices, facões e metralhadoras
empunhadas nas fotografias
saracoteiam diante dos meus olhos
III


E, de repente, eles estão aqui. E são milhares.
E são milhões. Uma fila enorme de homens sem dentes, mulheres sujas e descalças,
crianças maltrapilhas
estendem suas mãos ressequidas para nós.
Olho-me no espelho e descubro a cor púrpura
da fome, da miséria e do desespero.
Ouço o sussurrar do Grilo Falante ao meu ouvido:
_ “Acorda, Alice. Desperta desse pesadelo”, ele me diz.
“Vem comigo dar milho aos pombos da Praça da Paz.
Não há perigo. Hoje, todos os meninos de rua
foram para suas casas.
Seus pais chegaram mais cedo do trabalho
só para festejar o aniversário de cada um deles.
Todos os meninos ganharão um bolo,
guaraná, línguas de sogra e muita bexiga colorida
para estourar na noite de São João ”.
Ah, como é bôbo esse Grilo Falante.
Não é à toa que é apenas uma Consciência
_ ambulante!!!
Ele não sabe que eu não estou mais dormindo.
Eu e a bicha Divina somos os mestres de cerimônia
desta orgia pantagruélica.
E, juntos, damos as boas vindas aos miseráveis:

IV


Aos pobres, paralíticos e vagabundos.
Às prostitutas e aos bêbados.
Aos loucos e aos ladrões.
Todos têm entrada franca
no último baile apocalíptico.
Aos pares, depois de comer e beber
do próprio sangue, vertido das páginas dos jornais,
todos rodopiam pelas ruas
de uma cidade cintilante
com prédios, carros, viadutos e habitantes de cristal.
Transformados em anjos, eles voam
pela paisagem etérica
e, com seu rufar de asas,
derrubam todas as flores do mal.
Os ipês roxos estendem suas pétalas púrpuras
a sua passagem.
O rio de agora não é mais uma enxurrada
de manchetes cruéis,
mas uma enchente de flores roxas. Um tapete tinto.
De vinho. E as taças cruzam-se no firmamento
num brinde, aos deuses da beleza e do amor.

V

_ “Alguém viu o meu cavalo branco pastando por aí”.
Pergunto e me descubro só.
Nem os coadjuvantes deste filme triste
ficaram para o banquete à meia-noite.
Só eu rodopio com a fantasia de palhaço nos braços,
num abraço melancólico e, ao mesmo tempo, triunfal.
Um fio de prata escorre pela fresta da porta.
Entre os mortos e a morte a vida é um vão.
O diretor já cortou essa cena dezenas de vezes.
Mas eu insisto em repetí-la.
Os vermes que vomitam na minha cabeça
fazem menos mal que as balas
dos revólveres dos soldados
descarregadas sobre o exército de desdentados.
Soldados rasos. Soldadinhos.
_ “Marchem, marchem!!!”.
E eles só sabem executar ordens.
O funcionário da minha repartição pública também...estranha gente essa. Parece de chumbo.
Soldadinhos de chumbo.
Junto-os com as mãos em concha
e coloco-os todos na boca. De uma só vez.
Mastigo-os como balas de goma.
Têm sabor de laranja, groselha, morango e mel.
Os soldadinhos da minha infância.

VI


Abro os olhos.
Do calendário preso à parede, na minha frente,
desprende-se uma última folhinha:
é 21 de Abril. Descobrimento do Brasil.
Ah, não!!!.
Olho para todos os lados.
Vejo se ninguém percebeu meus rumores
fantasmagóricos de sonâmbula, de morta-viva,
de personagem oculta nesse palco.
Apago as luzes do archote da sala.
Fecho as janelas de toda a casa.
Puxo as cobertas bem devagarinho.
E volto a dormir.
Porque essa praia, seu Cabral, eu já conheço.
Foi a puta que a pariu.



São Paulo, 22 de abril de 1996.




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