Poema para um minotauro azul e solitário





(O poeta tem olhos de ver o futuro.
Ajeita os óculos na ponta do nariz
e se posta diante de uma dessas janelas
-- es-can-ca-ra-das --
para a eternidade,
delicia-se com as notas frutais
de um refrescante Kir Royal
e põe-se a espiar a vida... )








As taças tilintando sobre a mesa.
As mãos que se cruzam e se tocam.
Quase uma prece.
Das taças vermelhas escorrem gotas
do borbulhante champagne.
Olhos. Bocas. Decotes.Fendas.
Tudo é penetrável e impenetrante.
Saliências e reentrâncias
do tronco da figueira, que se desenrola para o céu,
e se faz de teto para os amantes em fuga.
O gozo é azul
e a fruta do amor é do tamanho de um elefante
preso pelo rabo no elevador.
As taças se encontram às escondidas
no reflexo do espelho. Miram-se. Tocam-se.
E se derretem em gotículas de prazer.
O silêncio das bocas não traduz o desejo das línguas.
Bocas entreabertas degustam o sabor do não dizer...só sentir...
o desejo imenso de escorregar dedos
pelos tecidos molengos, sedosos,
tão safadamente sedutores

de sua longa e malemolente saia preta.
Picasso e o seu minotauro dançam um flamenco manco
nas varandas espanholas de uma tela à meia luz.
Seu sorriso é tão doce e cruel que não terei forças
para ir-me embora desse reino fantástico
que rouba me as palavras e a razão,
transformando-me num ser tão completamente só
e tão desesperadamente -- ávido -- de amor.

III

Ela sabe que é preciso beber muito
desse coquetel dos deuses
para ter coragem de ir frente,
enfrentar tiranos e vendávais noturnos,
só para estar com seu homem,
e ouvir, entre beijos e sussurros,
que o amor foi dar um passeio,
mas logo volta.
Enquanto isso,
pode escolher entre um solfejo de uma nota só,
um leque chinês desbotado sobre a cômoda,
um par de meias, ainda quentinhas, made in USA,
ou um bombom com gosto de chocolate passado
que se oferece, desonesto, sobre o frigobar.

IV

Ela sabe que o amor precisará de muitos volteios
de sua saia godê,
para ter de volta seus galanteios
de homem cosmopolita, cidadão do mundo.
Talvez ele esteja numa dessas esquinas qualquer
de Estocolmo, Moscou, Toquio, Tombuquetu,
São Paulo, Bangladesh, Shangai, Pequim,
esperando um táxi, comprando um jornal,
tomando um cafézinho, assim, nada demais,
exatamente igual a qualquer executivo
desses que as máquinas de moer cérebros
não páram de expelir, aos borbotões.
Talvez ele esteja numa ótica,
comprando um óculos novo,
e, sem querer, esbarra numa antiga conhecida,
repentina carta de um velho tarô cigano.
"Descartada?"
"Sim, juro". Namorada japonesa, nunca mais.
Adoro encher a cara de saquê,
mas haraquiri, não,
não vou cometer suicídio
por um crime que não cometi.
Sayonará.

V

E o amor chega rápido, como um raio que trelisca no céu,
e vem mordiscar a sua língua, com um delicioso sabor de aniz.
Ele teme pelo seu poder de bruxa,
mas se deixa encantar pelos prazeres inconfessáveis
que terá nessa noite,
tão imensamente mágica,
tão denso luar, rabo de prata no firmamento,
noite entalhada à mão, por um ourives milenar,
com a complascência dos velhos samurais,
que, não resistem ao cheiro denso de incenso
exalado de seus corpos transpirados,
abrem a cortina bem devagar,
e descem do céu, para espiar...

Comentários

Anônimo disse…
Marisa, gostei muito deste texto também!
Partilharei seu blog através do meu para que mais gente possa ter contato com seus textos.
Um forte abraço,

J.

Postagens mais visitadas deste blog

O canto da carroça

Nésperas do esquecimento

Valsa com a morte