A sofreguidão das horas


“Porque é de manhã e
tudo em ti se acalma do que termina.
A neblina se inclina ao sol.
Dobra-se no feixe dos teus olhos
durante todo o até.”

Patricia Claudine Hoffmann

                                                Ilustração: Elena Schlegel



É de manhã que a sua fome de amor se acalma.
Se enrola no lençol branco e dorme, recém-nascido;
os raios de sol encortinam-se nos seus cílios e pincelam de dourado o quarto;
e tudo em volta é silêncio e imóvel permanência, 
até o final dos dias.

Como se o tempo não fosse o portador de ruínas,
ainda que também de discernimento.
O tempo que se veste de sol, durante o dia, e de lua, à noite,
para se camuflar com sua idade primeva e inaugural das trevas.

Entre o azul e o lilás do seu manto,
eis um senhor desdentado e vestido de outono,
sem nenhum pudor de suas folhas secas.

Nos milharais da infância, sua têz era sanguínea.
Com o arado em riste, fazia brotar suas sementes.
Seu sêmen povoava a terra herdada dos seus antepassados,
e tudo era vôo de pássaro e água fresca da fonte.

Agora, está só no mundo.
Tudo em volta é desesperança
e sol quente do meio-dia.
Riso amarelado de demônio, 
meio demente.

Nenhum chapéu para proteger sua fronte.

O suor salgado, machuca-lhe a pele cortada pelas folhas finas do capinzal.
Seus lábios ressequidos buscam o cálice esquecido entre as baldranas,
penduradas no paiol.

Fecha os olhos e finge dormir...

Penteia os cabelos da madrugada em seu colo, 
entre vígilias e despertares abruptos;
os gritos roucos no meio da noite despertam a ira dos ratos,
mas nem sua mãe vem aplacar-lhe os soluços.

O vento barbudo lá fora não ousa um balbucio.

Teus dias já estão arrancados do calendário, bem o sabe,
mas carrega a tua cruz
com a convicção dos homens crentes na sofreguidão das horas,
no amanhecer dos dias que virão depois,
para os teus descendentes.

É de manhã que a sua fome de amor se acalma.

Então, adormece, renascido. 

São Paulo, 08 de Agosto de 2017.








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